Papi ou Papa foi um homem fora da curva para todas as épocas. Um homem de visão mística e improvável naqueles tempos. “Self-made man” e autodidata, buscou a própria formação profissional, saindo de torneiro mecânico – profissão na qual ingressou como aprendiz, ainda na adolescência  – para projetista e empresário.

Embora falasse fluentemente alemão, sua língua materna, tinha pouquíssimo conhecimento do inglês, o que não o impediu de lecionar essa língua para os colegas enquanto funcionário na General Motors. No jargão popular, ele sabia “se virar”.

Dentre seus empreendimentos, o depósito de material de construção Ipê deu bastante trabalho para toda a família. Durante a semana, minha mãe atendia no balcão da loja. Eu e minhas irmãs também, nos horários em que não tínhamos aula. Ainda que meu trabalho como atendente ao público fosse apenas o de chamar a minha mãe quando um cliente ocasional entrasse na loja, essa era uma atividade de que eu realmente não gostava. Além de tediosa, a exposição ao público me era constrangedora.

Fora dos horários de trabalho, à noitinha e nos finais de semana, meu pai e eu carregávamos o caminhão para fazer as entregas das vendas da semana. Areia, pedra, tijolos. O saco de cimento, com seus 60kg, eu não aguentava. Mas os de cal, com 20kg, eu carregava na cabeça. Muitas entregas, muitas boleias de caminhão como ajudante e carregador.

Desta forma, eu vivia em dois universos distintos. 

Um universo em casa, como construtor de meus próprios brinquedos, como carrinhos de rolimã e, quando havia obra, também como ajudante de pedreiro, encanador e pintor, além de ajudante de caminhoneiro. Fui criador de passarinhos, construtor de gaiolas e viveiros, aquarista, e até tartarugas da Amazônia comprei com meu irmão no mercado central, numa época em que preservação ambiental sequer era ensinada nas escolas.

O outro universo era na escola, onde cheguei a compartilhar a mesma carteira com a filha do presidente da Volkswagen. Convivi com colegas, filhos de altos executivos de multinacionais alemãs. A arrogância dos “alemães de Santo Amaro”, como posteriormente nos autointitulamos, era realmente palpável, o que, na época, reforçava em mim a sensação de ser “um estranho no ninho”. 

Meus colegas brincavam de autorama (modelos de carros de corrida elétricos) e viajavam para a Alemanha nas férias, enquanto eu construía meus brinquedos e ajudava a carregar o caminhão amarelo e preto do depósito Ipê. 

Hoje, sou imensamente grato por ter vivenciado essa dicotomia, pois ela representa uma pedra angular em minha vida. Aprendi a dar valor ao trabalho e à própria vida, coisa que muitos colegas mais abastados não souberam levar para as suas vidas.

Na época, eu ainda estava longe de entender que a arrogância nada mais é do que uma frágil vestimenta para encobrir o medo da rejeição. O medo de não ser aceito e reconhecido.

Aprendi bem a lição e tornei-me um arrogante profissional.

 

 . . . 

 

A paixão de meu pai pelo conhecimento e leitura colocou em casa uma imensa biblioteca. Livros didáticos, enciclopédias, romances. Livros alemães que, durante a 2ª Guerra, meu pai e tios-avós enterraram em papel oleado, para salvá-los de serem consumidos em fogueiras. 

Havia um amplo e eclético espaço para diferentes autores, inclusive Lobsang Rampa, com suas estórias de monges no Tibet, Erich von Däniken (Eram os Deuses Astronautas?) e Isaac Asimov, este último, escritor de ficção científica, um de meus preferidos.

Esse arsenal literário possibilitou que eu, por exemplo, produzisse pólvora. Sim, isso mesmo! A fórmula está nas enciclopédias Barsa e Britânica, ambas nas prateleiras de nossa biblioteca.

Já os ingredientes, na época, eram de fácil aquisição — hoje são de venda controlada, o que me permite relatar isso sem correr o risco de induzir alguém a querer repetir o feito.

Comprava os ingredientes no Dieberger, loja de produtos para horta e jardim. O carvão era vegetal, da carvoaria da esquina, produzido com lenha da Mata Atlântica e moído em pedra de esmeril num pó infinito, de pretejar tudo na oficina, começando por nossas narinas. Assim, demos início à produção e, ainda que artesanal, em quantidades expressivas, de dezenas de quilos. Sim, demos início, porque não fiz isso sozinho: eu aliciei meus irmãos como participantes ativos no projeto.

A qualidade do produto de nossa fabricação era muito baixa – felizmente –, mas garantiu algumas “bombinhas” juninas que ecoavam em todo o bairro, feitas de um pedaço de cano de ferro de uns cinco centímetros de diâmetro, as bordas amassadas e dobradas, recheadas com nossa alquimia. Vizinhos chegaram a perguntar se um botijão de gás havia explodido. 

Mas o ponto alto foram os vulcões, onde a pólvora de combustão lenta funcionava muito bem. As carcaças, de chapa de aço número 20, fizemos nas instalações da metalúrgica do Papa. 

Nas festas juninas, de concorrida audiência, com direito a danças de quadrilha, os vulcões constituíam um espetáculo, lançando, no jato de fogo, pedaços de alumínio incandescente a mais de dez metros de altura. Os percalços iniciais, com direito a explosões que arrancavam o fundo torneado de madeira, impulsionando a carcaça de lata incandescente para o alto e oferecendo risco real a todos os presentes, foram sendo contornados com o aprendizado: ajustando a boca do vulcão de forma proporcional para permitir uma queima mais lenta e não explosiva. Desenvolvemos “técnicas” de segurança, envolvendo os vulcões com pneus velhos e paralelepípedos, apoiando e travando a carcaça para não decolar, caso explodisse.

Suspeito que, nos dias de hoje, essas brincadeiras seriam tachadas de insanidade… Seja como for, os anjos da guarda eram fortes e ninguém se machucou.

Ademais, tínhamos a supervisão de meu pai, ainda que à distância, o que não passou despercebido. Anos mais tarde, ele me contou ter juntado uma quantidade expressiva de pólvora de cartuchos de balas em seu esconderijo, na adolescência. Seu padrasto descobriu e aplicou a devida repreensão, que, na época, era no tapa e, portanto, severa.

Percebo hoje que eu e meus irmãos ajudamos na realização de sonhos interrompidos da adolescência de meu pai. 

Não pude expressar com todas as letras minha gratidão e reconhecimento a ele em vida. Faço-o agora, ainda mais porque ele já se apresentou em trabalhos que venho conduzindo, o que sempre me emociona e traz muita alegria.

A bênção, meu pai.